sábado, 7 de fevereiro de 2015

Quem tudo tem, nada tem



Carlos Bickmann



No dia 29, mensagens de congratulações pelo Dia do Jornalista. Dizem (mas não é certeza) de que é uma homenagem ao grande José do Patrocínio, um dos líderes da campanha abolicionista. Mas houve também 24 de janeiro, data dedicada ao padroeiro católico do Jornalismo, São Francisco de Sales; e 16 de fevereiro, Dia do Repórter; e 7 de abril, dedicado a Líbero Badaró; ou 3 de maio, Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, data escolhida pela ONU; ou 1º de junho, dia da fundação do primeiro jornal brasileiro, o Correio Braziliense, editado em Londres por Hipólito José da Costa.

Talvez Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça seja o patrono ideal da imprensa brasileira: nasceu em território uruguaio (que, na época, era parte do Brasil); tinha, como todo brasileiro deveria ter, o sobrenome Furtado; vítima da censura, foi obrigado a trabalhar fora do país e transportar seu jornal para o porto do Rio nos navios a vela do início do século 19. E, é triste dizer, acabou levando algum do governo para ficar bem mais moderado.

Mas isso é questão de opinião: o fato é que a profissão de jornalista ainda hoje não tem sequer um dia definido, nem um patrono aceito por todos. Até a TV, muito mais recente, tem Santa Clara como padroeira. Já o jornalismo, que nos trouxe as histórias da Suméria e da Babilônia, nos deu a Bíblia, nos narrou a Guerra de Tróia, nos contou a saga de Ulisses e do cão que se lembrou dele, nem se sabe bem o que é. E não se diga que os jornalistas que narraram os primórdios da História escrita jornalistas não são, já que seus relatos misturam fatos, crenças, opiniões, adaptações de antigas histórias, eventos que não presenciaram. Basta ler um texto sobre um assunto de que se entenda para descobrir que esses antigos vícios permanecem até hoje. E como o pessoal das antiquíssimas gerações escrevia bem!

Há quem conteste até a mais precisa definição profissional, de que jornalista é aquele que recolhe os fatos e os transfere de forma inteligível aos consumidores de informação. Para estes, nenhuma definição é mais completa do que uma ampla, caríssima, vistosa, múltipla variedade de diplomas nas mais diversas línguas.

Mas, enfim, há um fator essencial ao jornalismo: o exercício da liberdade de expressão. Líbero Badaró foi assassinado por sua oposição ao imperador D. Pedro 1º. Ao cair, vítima de tiros de bacamarte, teve tempo de dizer: “Morre um liberal, mas não morre a liberdade”. Se não o disse, o repórter que registrou o fato criou uma belíssima frase. A Província de S. Paulo(hoje O Estado de S.Paulo) e o Diário Popular (hoje Diário de S. Paulo) nasceram para lutar pela abolição da escravatura e pela proclamação da República. Por discordar da ditadura de Getúlio Vargas, Júlio de Mesquita Filho e boa parte da família tiveram de buscar asilo na Europa. Samuel Wainer, que tinha montado um império jornalístico espalhado pelo país, perdeu tudo ao defender o presidente João Goulart, deposto, e teve de se exilar. Carlos Lacerda se opôs a Getúlio Vargas (em seu mandato de presidente constitucional) e foi baleado.

É difícil entender como jornalistas podem se opor à liberdade de expressão; mas isso continua existindo, sob os mais variados pretextos, evitando-se ao máximo usar a palavra “censura”, politicamente incorreta. É difícil de entender; mas sempre houve jornalistas dispostos a defender sua própria liberdade de expressão e a censura rigorosa aos colegas que se opusessem à sua verdade.

Outros patronos do jornalismo já mostravam facetas diversas da profissão. José do Patrocínio, vítima da pressão do governo, não pôde continuar na imprensa, já que não lhe permitiam defender suas ideias. Seu jornal foi fechado e o marechal Floriano Peixoto o exilou no Alto Rio Negro, num lugar até hoje de difícil acesso. Ao morrer de tuberculose, seu maior interesse era a nova fronteira do conhecimento, a aviação (a primeira hemoptise, o sinal de que estava condenado à morte, surgiu exatamente quando discursava em homenagem a Santos Dumont). Hipólito José da Costa era um personagem mais complexo: viajou para a Inglaterra a serviço do governo português, lá editou um jornal de oposição, alguns anos depois fez um acordo (ah, Jornalismo, quanto o presente se parece com o passado!) com o governo de Portugal, que em troca de sua moderação compraria um bom número de exemplares de cada edição, e acabou sendo nomeado cônsul do Brasil em Londres. Morreu antes de assumir.

Enfim, todo dia é Dia do Jornalista. Sempre que há uma reviravolta autoritária no país, os ditadores de plantão dedicam o primeiro dia de sua gestão aos jornalistas: nunca lhes falta uma grande lista de profissionais para perseguir, prender, exilar e matar.